sexta-feira, 19 de outubro de 2007

quarta-feira, 12 de setembro de 2007

Receita de mulher


As muito feias que me perdoem Mas beleza é fundamental. É preciso Que haja qualquer coisa de dança, qualquer coisa de haute couture Em tudo isso (ou então Que a mulher se socialize elegantemente em azul, como na República [Popular Chinesa). Não há meio-termo possível. É preciso Qu tudo isso seja belo. É preciso que súbito Tenha-se a impressão de ver uma garça apenas pousada e que um rosto Adquira de vez em quando essa cor só encontrável no terceiro minuto da [aurora. É preciso que tudo isso seja sem ser, mas que se reflita e desabroche No olhar dos homens. É preciso, é absolutamente preciso Que tudo seja belo e inesperado. É preciso que umas pálpebras cerradas Lembrem um verso de Eluard e que se acaricie nuns braços Alguma coisa além da carne: que se os toque Como ao âmbar de uma tarde. Ah, deixai-e dizer-vos Que é preciso que a mulher que ali está como a corola ante o pássaro Seja bela ou tenha pelo menos um rosto que lembre um templo e Seja leve como um resto de nuvem: mas que seja uma nuvem Com olhos e nádegas. Nádegas é importantíssimo. Olhos, então Nem se fala, que olhem com certa maldade inocente. Uma boca Fresca (nunca úmida!) e também de extrema pertinência. É preciso que as extremidades sejam magras; que uns ossos Despontem, sobretudo a rótula no cruzar das pernas, e as pontas pélvicas No enlaçar de uma cintura semovente. Gravíssimo é, porém, o problema das saboneteiras: uma mulher sem [saboneteiras É como um rio sem pontes. Indispensável Que haja uma hipótese de barriguinha, e em seguida A mulher se alteie em cálice, e que seus seios Sejam uma expressão greco-romana, mais que gótica ou barroca E possam iluminar o escuro com uma capacidade mínima de 5 velas. Sobremodo pertinaz é estarem a caveira e a coluna vertebral Levemente à mostra; e que exista um grande latifúndio dorsal! Os membros que terminem como hastes, mas bem haja um certo volume de [coxas E que elas sejam lisas, lisas como a pétala e cobertas de suavíssima [penugem No entanto, sensível à carícia em sentido contrário. É aconselhável na axila uma doce relva com aroma próprio Apenas sensível (um mínimo de produtos farmacêuticos!) Preferíveis sem dúvida os pescoços longos De forma que a cabeça dê por vezes a impressão De nada ter a ver com o corpo, e a mulher não lembre Flores sem mistério. Pés e mãos devem conter elementos góticos Discretos. A pele deve ser fresca nas mãos, nos braços, no dorso e na face Mas que as concavidades e reentrâncias tenham uma temperatura nunca [inferior A 37° centígrados podendo eventualmente provocar queimaduras Do 1° grau. Os olhos, que sejam de preferência grandes E de rotação pelo menos tão lenta quanto a da Terra; e Que se coloquem sempre para lá de um invisível muro da paixão Que é preciso ultrapassar. Que a mulher seja em princípio alta Ou, caso baixa, que tenha a atitude mental dos altos píncaros. Ah, que a mulher dê sempre a impressão de que, se se fechar os olhos Ao abri-los ela não mais estará presente Com seu sorriso e suas tramas. Que ela surja, não venha; parta, não vá E que possua uma certa capacidade de emudecer subitamente e nos fazer [beber O fel da dúvida. Oh, sobretudo Que ele não perca nunca, não importa em que mundo Não importa em que circunstâncias, a sua infinita volubilidade De pássaro; e que acariciada no fundo de si mesma Transforme-se em fera sem perder sua graça de ave; e que exale sempre O impossível perfume; e destile sempre O embriagante mel; e cante sempre o inaudível canto Da sua combustão; e não deixe de ser nunca a eterna dançarina Do efêmero; e em sua incalculável imperfeição Constitua a coisa mais bela e mais perfeita de toda a criação inumerável.



Vinicius de Moraes

sábado, 8 de setembro de 2007


Gotas de Luar




Se eu pudesse roubar
as gotas de luar
que vi brilhar
nos olhos teus
guardava aquele encanto
para enfeitar meu pranto
na hora do adeus
Sei que muito breve
tu irás me esquecer
eu sei que vou sofrer
por culpa da minha paixão
eu devia te deixar
mas vou continuar
para castigar
meu pobre coração












Marisa Monte

Beija Eu


Seja eu,
Seja eu,
Deixa que eu seja eu.
E aceita
O que seja seu.
Então deita e aceita eu.
Molha eu,
Seca eu,
Deixa que eu seja o céu
E receba
O que seja seu.
Anoiteça e amanheça eu.
Beija eu,
Beija eu,
Beija eu, me beija.
Deixa
O que seja ser
Então beba e receba
Meu corpo no seu corpo,
Eu no meu corpo,
Deixa,
Eu me deixo
Anoiteça e amanheça





Marisa Monte

quarta-feira, 5 de setembro de 2007

Nada




Nada começa e nada termina,morno,


quieta...bem quieta eu suspiro,


percebo que a vida ainda existe


e que B.B King esta no meu ouvido


com sua canção Laundromat Blues


e tudo já empalidecido acaba morrendo


só, somente só o pensamento vai longe,vai...foi!


a melancólica rotina esta a martelar


como um metronomo num infernal 4/4,


não damais pra aguentar,


ja costurei o céu


com as cordas do meu violão,


ja deixei o meu quarto para a morada


dos anjos mas, mesmo assim, mesmo assim


tudo vive e em mim nada acontece,


de saco cheio, não quero escrever mais nada não.








Nisseli Velocipe.

terça-feira, 4 de setembro de 2007

Aracaju, Caetano Veloso

http://www.youtube.com/watch?v=w8I0bzlcWIQ

A mesma mão que bate também faz carinho


Tem muita gente que sente falta da educação do passado. Há 30 anos, a escola – segunda etapa do processo socializador do homem, sendo a família a primeira – no contexto da ditadura militar, absorveu os valores da antiga moral familiar e, em detrimento dos estudantes, legitimou a ação de professores autoritários e arrogantes. Como resultado, a relação entre estudantes e professores estabeleceu-se de forma extremamente desigual.
Naquela época, os professores – tidos como únicos possuidores do saber válido, o que automaticamente rebaixava os estudantes à condição de alunos (palavra derivada do latim que significa ausência de luz) – reprimiam duramente qualquer atitude que se opusesse ao comportamento por eles desejado. A escola, no intuito de moldar os estudantes segundo as premissas de cidadão ideal convenientes ao sistema vigente, ignorava as particularidades de cada um, tolhendo-lhes o direito de questionar qualquer ato que pusesse em xeque a moral do professor e mostrando grande desapreço à criatividade. A regra era não pensar.
Com o passar do tempo – acompanhando o processo de abertura política e modernização da sociedade brasileira – a antiga instituição educacional foi sendo modificada até chegar ao estágio atual. O freqüente problema de indisciplina nas escolas acarreta dúvidas quanta a eficiência da atual política educacional – esta preza pela participação efetiva do aluno no processo de aprendizagem, valorizando e respeitando suas individualidades – acalentando em alguns pais até certo saudosismo.
Seria um retrocesso se na dinâmica sociedade atual, em que a pluralidade de opções proporciona ao individuo a liberdade de construir seu próprio caminho, a escola retomasse o antigo regime educacional. Não obstante, é perceptível na sociedade em geral uma necessidade de fiscalização, de controle. Entretanto, a questão a ser debatida não é a conquista da liberdade – uma vez que esta é o direito de todos – e sim o que se fazer com a mesma. Pais e escola, ao invés de reprimir os jovens devem educá-los de tal forma que estes saibam decidir sozinhos o que melhor lhes convém.






Paulo César di Linharez.

ABSTRAÇÕES DE UM SEGUNDO PISO


Era uma praça de alimentação. Daquelas que reduzem o passo da acelerada rotina semanal. Daquelas que tem mesa e cadeira, vaidade e ansiedade. Daquelas, por muitas vezes, vazias de tanta gente.

Era uma moça. Daquelas que reduzem o passo dos acelerados olhares eventuais. Daquelas de ventre e coxas, vaidade e ansiedade. Daquelas que, por muitas vezes, guardam uma cadeira vazia ao lado.

E era um rapaz. Daqueles que aceleram o passo por medo de desistir e voltar. Daqueles de membro e olhos – vaidade e ansiedade. Daqueles que, por muitas vezes, guardam um espaço vazio entre os dedos.

De alimentação. Comum e recomendável que fosse.
Vão se os poetas. Ficam as praças.



Carlos Néri Out/2006

segunda-feira, 3 de setembro de 2007

...



Tom Jobim - Retrato em Preto e Branco





Já conheço os passos dessa estrada

Sei que não vai dar em nada

Seus segredos sei de cor

Já conheço as pedras do caminho

E sei também que ali sozinho

Eu vou ficar tanto pior

O que é que eu posso contra o encanto

Desse amor que eu nego tanto

Evito tanto

E que no entanto

Volta sempre a enfeitiçar

Com seus mesmos tristes, velhos fatos

Que num álbum de retratos

Eu teimo em colecionar

Lá vou eu de novo como um tolo

Procurar o desconsolo
Que cansei de conhecer

Novos dias tristes, noites claras

Versos, cartas, minha cara

Ainda volto a lhe escrever

Pra lhe dizer que isso é pecado

Eu trago o peito tão marcado

De lembranças do passado

E você sabe a razão

Vou colecionar mais um soneto

Outro retrato em branco e preto

A maltratar meu coração .

domingo, 2 de setembro de 2007

Tão seu





Eu sinto sua falta
Não posso esperar tanto tempo assim
O nosso amor é novo
É o velho amor ainda e sempre
Não diga que não vem me verde noite eu quero descansar
Ir ao cinema com vocêUm filme à toa no Pathé
Que culpa a gente tem de ser feliz
Que culpa a gente tem, meu bem
O mundo bem diante do nariz
Feliz agora e não além
Me sinto só, me sinto só, me sinto tão seu
Me sinto tão, me sinto só e sou teu
Me sinto só, me sinto só, me sinto tão seu
Me sinto tão, me sinto só e sou teu
Eu faço tanta coisa
Pensando no momento de te ver
A minha casa sem você é triste
E a espera arde sem me aquecer
Não diga que você não volta
Eu não vou conseguir dormir
À noite eu quero descansar
Sair à toa por aí
Me sinto só, me sinto só, me sinto tão seu
Me sinto tão, me sinto só e sou teu
Me sinto só, me sinto só, me sinto tão seu
Me sinto tão, me sinto só e sou teu
Eu sinto sua falta
Não posso esperar tanto tempo assim
O nosso amor é novo
É o velho amor ainda e sempre
Que culpa a gente tem de ser feliz
Eu digo eles ou nós dois
O mundo bem diante do nariz
Feliz agora e não depois
Me sinto só, me sinto só, me sinto tão seu
Me sinto tão, me sinto só e sou teu
Me sinto só, me sinto só, me sinto tão seu
Me sinto tão, me sinto só e sou teu.
Skank.

ETA SONO...


Hay nao me deixou dormir, acredite se quiser...

ensaio jajá e o corpo ta moooorto de cansado...mas viva,viva,

viva MadQueen!!!!!!!!!!!!!!!

sábado, 1 de setembro de 2007

O ÚLTIMO SORTILÉGIO




"JÁ REPETI o antigo encantamento,
E a grande Deusa aos olhos se negou.
Já repeti, nas pausas do amplo vento,
As orações cuja alma é um ser fecundo.
Nada me o abismo deu ou o céu mostrou.
Só o vento volta onde estou toda e só,
E tudo dorme no confuso mundo.

"Outrora meu condão fadava as sarças
E a minha evocação do solo erguia
Presenças concentradas das que esparsas
Dormem nas formas naturais das coisas.
Outrora a minha voz acontecia.
Fadas e elfos, se eu chamasse, via,
E as folhas da floresta eram lustrosas.

"Minha varinha, com que da vontade
Falava às existências essenciais,
Já não conhece a minha realidade.
Já, se o círculo traço, não há nada.
Murmura o vento alheio extintos ais,
E ao luar que sobe além dos matagais
Não sou mais do que os bosques ou a estrada.

"Já me falece o dom com que me amavam.
Já me não torno a forma e o fim da vida
A quantos que, buscando-os, me buscavam.
Já, praia, o mar dos braços não me inunda.
Nem já me vejo ao sol saudado erguida,
Ou, em êxtase mágico perdida,
Ao luar, à boca da caverna funda.

"Já as sacras potências infernais,
Que, dormentes sem deuses nem destino,
À substância das coisas são iguais,
Não ouvem minha voz ou os nomes seus,
A música partiu-se do meu hino.
Já meu furor astral não é divino
Nem meu corpo pensado é já um deus.

"E as longínquas deidades do atro poço,
Que tantas vezes, pálida, evoquei
Com a raiva de amar em alvoroço,
Inevocadas hoje ante mim estão.
Como, sem que as amasse, eu as chamei,
Agora, que não amo, as tenho, e sei
Que meu vendido ser consumirão.

"Tu , porém, Sol, cujo ouro me foi presa,
Tu, Lua, cuja prata converti
Se já não podeis dar-me esta beleza
Que tantas vezes tive por querer,
Ao menos meu ser findo dividi -
Meu ser essencial se perca em si,
Só meu corpo sem mim fique alma e ser!

"Converta-me a minha última magia
Numa estátua de mim em corpo vivo!
Morra quem sou, mas quem me fiz e havia,
Anônima presença que se beija,
Carne do meu abstrato amor cativo,
Seja a morte de mim em que revivo;
E tal qual fui, não sendo nada, eu seja!"












Fernando Pessoa


quinta-feira, 30 de agosto de 2007

EU OUÇO MÚSICA


Eu ouço música como quem apanha chuva:resignado e triste de saber que
existe um mundo do Outro Mundo... Eu ouço música como quem está
morto e sente já um profundo desconforto de me verem ainda neste mundo
de cá... Perdoai,maestros,meu estranho ar!Eu ouço música como um anjo
doente que não pode voar.





Mario Quintana

Ana Vidovic by Albeniz

http://www.youtube.com/watch?v=Nx7vOb7GNBg&mode=related&search=

e agente vai levando...


quarta-feira, 29 de agosto de 2007

TABACARIA


Não sou nada.Nunca serei nada.Não posso querer ser nada.À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.
Janelas do meu quarto,Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é(E se soubessem quem é, o que saberiam?),Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,Com a morte a por umidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.
Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,E não tivesse mais irmandade com as coisasSenão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da ruaA fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitadaDe dentro da minha cabeça,E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.
Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.Estou hoje dividido entre a lealdade que devoÀ Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.
Falhei em tudo.Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.A aprendizagem que me deram,Desci dela pela janela das traseiras da casa.Fui até ao campo com grandes propósitos.Mas lá encontrei só ervas e árvores,E quando havia gente era igual à outra.Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei de pensar?
Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?Ser o que penso? Mas penso tanta coisa!E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!Gênio? Neste momentoCem mil cérebros se concebem em sonho gênios como eu,E a história não marcará, quem sabe?, nem um,Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.Não, não creio em mim.Em todos os manicômios há doidos malucos com tantas certezas!Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?Não, nem em mim...Em quantas mansardas e não-mansardas do mundoNão estão nesta hora gênios-para-si-mesmos sonhando?Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas -Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -,E quem sabe se realizáveis,Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?O mundo é para quem nasce para o conquistarE não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,Ainda que não more nela;Serei sempre o que não nasceu para isso;Serei sempre só o que tinha qualidades;Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta,E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,E ouviu a voz de Deus num poço tapado.Crer em mim? Não, nem em nada.Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardenteO seu sol, a sua chava, o vento que me acha o cabelo,E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.Escravos cardíacos das estrelas,Conquistamos todo o mundo antes de nos levantar da cama;Mas acordamos e ele é opaco,Levantamo-nos e ele é alheio,Saímos de casa e ele é a terra inteira,Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.
(Come chocolates, pequena;Come chocolates!Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.Come, pequena suja, come!Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)
Mas ao menos fica da amargura do que nunca sereiA caligrafia rápida destes versos,Pórtico partido para o Impossível.Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,Nobre ao menos no gesto largo com que atiroA roupa suja que sou, em rol, pra o decurso das coisas,E fico em casa sem camisa.
(Tu que consolas, que não existes e por isso consolas,Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais,Ou não sei quê moderno - não concebo bem o quê -Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!Meu coração é um balde despejado.Como os que invocam espíritos invocam espíritos invocoA mim mesmo e não encontro nada.Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,Vejo os cães que também existem,E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)
Vivi, estudei, amei e até cri,E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o raboE que é rabo para aquém do lagarto remexidamente
Fiz de mim o que não soubeE o que podia fazer de mim não o fiz.O dominó que vesti era errado.Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.Quando quis tirar a máscara,Estava pegada à cara.Quando a tirei e me vi ao espelho,Já tinha envelhecido.Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.Deitei fora a máscara e dormi no vestiárioComo um cão tolerado pela gerênciaPor ser inofensivoE vou escrever esta história para provar que sou sublime.
Essência musical dos meus versos inúteis,Quem me dera encontrar-me como coisa que eu fizesse,E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,Calcando aos pés a consciência de estar existindo,Como um tapete em que um bêbado tropeçaOu um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.
Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.Olho-o com o deconforto da cabeça mal voltadaE com o desconforto da alma mal-entendendo.Ele morrerá e eu morrerei.Ele deixará a tabuleta, eu deixarei os versos.A certa altura morrerá a tabuleta também, os versos também.Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,E a língua em que foram escritos os versos.Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como genteContinuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas,
Sempre uma coisa defronte da outra,Sempre uma coisa tão inútil como a outra,Sempre o impossível tão estúpido como o real,Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície,Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.
Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?)E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.Semiergo-me enérgico, convencido, humano,E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.
Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-losE saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.Sigo o fumo como uma rota própria,E gozo, num momento sensitivo e competente,A libertação de todas as especulaçõesE a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto.
Depois deito-me para trás na cadeiraE continuo fumando.Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.
(Se eu casasse com a filha da minha lavadeiraTalvez fosse feliz.)Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).Ah, conheço-o; é o Esteves sem metafísica.(O Dono da Tabacaria chegou à porta.)Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universoReconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu.
Álvaro de Campos, 15-1-1928